fbpx
Notícias

Crise na obstetrícia: o momento exige cautela

Dr.Desiré Carlos Callegari*
 
A polêmica causada pelo parecer 39/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que trata sobre critérios da disponibilidade obstétrica, levanta cortina de fumaça e desvia o foco dos reais problemas envolvidos na questão. Na verdade, o que assistimos é um triste espetáculo onde os interesses das operadoras de plano de saúde são defendidos, inclusive com a ajuda de setores do governo, cabendo aos médicos e à população se contentar com o que sobra.
 
Na Obstetrícia, é evidente o desgaste causado pelas perdas acumuladas ao longo dos anos e pela completa falta de equilíbrio na relação entre médicos e planos de saúde. Os valores por consultas e procedimentos têm tido reajustes tímidos, quando são feitos. Em contrapartida, a lucratividade das empresas cresce ano a ano, tornando o setor um dos mais rentáveis da economia.
 
Os dados não nos deixam mentir. Levantamento realizado pela Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia de São Paulo (Sogesp) feito junto a 44 operadoras de planos de saúde revela que elas pagam ao médico, em média, R$ 353,00 pela realização de um parto. Do total, 20 repassam de R$ 160,00 a R$ 300,00 pelo procedimento; outros 21, de R$ 304,00 a R$ 480,00; dois de R$ 528,00 a R$ 660,00; e apenas um o valor de R$ 1.181,40.
 
Pelo que foi demonstrado, a grande maioria dessas empresas paga ao médico menos que às equipes de gravação contratadas pelas famílias para registrar o parto. A responsabilidade e a disponibilidade recebem recompensa insuficiente, enquanto, por outro lado, a calculadora dos empresários registra continuamente os lucros obtidos com a prevalência dessa visão que privilegia os ganhos de mercado em detrimento da qualidade da assistência e da valorização dos profissionais.
 
Esta realidade torta, infelizmente, justifica a opção de centenas de colegas em abandonar a prática obstétrica. O fazem como reação à empáfia das operadoras e à indiferença com que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) trata o caso. Outra pesquisa recente, conduzida pelo Datafolha, denuncia a insatisfação em massa dos obstetras.
 
Sem remuneração e condições de trabalho adequadas, não há paixão que resista. O estudo mostra que 13% dos obstetras entrevistados decidiram abandonar a área, uma constatação séria, que deveria ser levada em conta pelos gestores públicos e privados pelas consequências severas que traz para a qualidade da assistência oferecida.
 
Com o parecer 39/2012, o CFM procurou contribuir para reduzir este desgaste. No entanto, distorções tendenciosas, que poluem o debate, exigem esclarecimento para afastar a falsa celeuma causada na imprensa, que só interessa aos empresários da saúde suplementar, ao transformar os médicos em vilões, ignorando-se a raiz do problema que gerou tal polêmica.
 
Para não incorrer no mesmo erro, optamos pelo didatismo. Em primeiro lugar, o parecer do CFM resulta de questionamento feito pela própria ANS, que detectou situações nas quais gestantes (usuárias de planos de saúde) pagavam à obstetras credenciados, que as acompanhavam no pré-natal, valores à parte para que o parto fosse realizado por estes profissionais. A dúvida encaminhada foi: este acerto é ético ou não?
 
O grande mérito do parecer foi definir o caráter antiético dessa forma de recebimento. Ou seja, o honorário do médico não pode ser custeado parte pelo plano de saúde e parte pela paciente. O pagamento deve ter origem em apenas uma fonte. No caso, a mulher receberá um recibo do profissional, que poderá ser usado em pedido de ressarcimento junto à operadora ou para dedução no imposto de renda.
 
É bom ainda lembrar que a mulher que não optar por esse acompanhamento presencial – com pagamento à parte – poderá fazer todo o seu pré-natal com um médico e fazer o parto com outro, que será disponibilizado em hospital de referência indicado pelo plano de saúde. Esta possibilidade já estará coberta pelo valor pago por ela mensalmente.
 
Lembramos ainda que o parecer do CFM cumpre papel orientador ao indicar cenários de conforto ético e sugerir comportamentos para evitar transtornos futuros. O texto – sabiamente – libera médicos e pacientes para tomarem suas decisões, apenas inserindo neste contexto as regras do jogo.
 
Contudo, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) introduziu no último minuto elemento estranho, que ainda precisa ser objeto de análise criteriosa. Ao afirmar em nota que o médico deverá fazer novo contrato com a operadora se acolher a orientação do parecer do CFM, a ANS interfere negativamente nesta relação.
 
Em nossa avaliação, essa repactuação penalizará o médico ao definir que ele passará a atender todos os procedimentos da segmentação obstétrica descritos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde. Em outras palavras, esse obstetra ficará refém de um acordo pelo qual será obrigado a estar disponível para o atendimento do parto em qualquer circunstância, faça chuva ou faça Sol, privando-o de seu direito constitucional de ir e vir.
 
Num contexto, de insatisfação com os valores de honorários e descrédito com as perspectivas profissionais, a ANS e as operadoras colocam os obstetras num campo nebuloso. Certamente, o impacto poderá ser sentido com o aumento abandono da área, inclusive por aqueles que ainda mantêm a esperança de mudanças positivas. Os prováveis problemas na cobertura assistencial causada pela queda no número de profissionais qualificados parecem ignorados.
 
São aspectos deste tipo que nos levam a recomendar muita cautela aos médicos e às pacientes ao analisar essa polêmica em torno do parecer 39/2012. Historicamente, as decisões tomadas na esfera da saúde suplementar têm prejudicado a estes dois grandes segmentos. Neste momento, no qual interesses midiáticos, econômicos e políticos estão em jogo, o bom senso pede que o tema seja devidamente dissecado para as decisões sejam as melhores.
 
*Conselheiro e Ex-Presidente do Cremesp; Conselheiro e 1º Secretário do CFM (Diretor de Comunicação e da Tecnologia de Informação); Diretor Adjunto de Tecnologia da Informação da APM Estadual; Superintendente do HEMC da Fundação ABC; Professor Regente da Disciplina de Anestesiologia da Faculdade de Medicina da Fundação ABC.

Gostou desse material? Compartilhe em suas redes

Posts relacionados

Diretor de Comunicação da ACM participa de Podcast 60+

Com 81 anos, o médico Ernani Lange S. Thiago falou sobre a sua experiência de longevidade e deu dicas para cuidados com a saúde Jornalista...

Ler mais

Diretora da ACM passa a integrar Conselho Estratégico do LIDE Mulher

Dra. Giovana Gomes Ribeiro é Diretora Administrativo-Financeiro da entidade médica e agora atua para reforçar o protagonismo da Mulher no setor...

Ler mais

Associe-se

Tenha acesso a todos os benefícios que só um sócio ACM possui.

Assinar Newsletter